O possível futuro que Octavia E. Butler nos deixou

Alexandre de Almeida
4 min readJun 26, 2021

Como você imagina o futuro do mundo? Eu vejo o futuro como “Bacurau” (2019): pequenos povoados isolados, autossustantáveis, com seus próprios métodos de comunicação e perseguidos por grandes potências que matam por esporte. Na verdade, esses são os principais pontos que ligam essa Ficção Científica brasileira à do livro de Octavia E. Butler. Uma verdadeira distopia com muitos heróis, e que se passa num futuro extremamente possível.

Em “A Parábola do Semeador”, primeiro livro da duologia “Semente da Terra”, o leitor conhece Lauren através de um texto que mais parece um diário de sobrevivente. Uma Anne Frank do futuro — mais exatamente a partir de 2024. Nas páginas, nota-se a presença inconfundível da força feminina que Butler impunha suas personagens.

A mesma força de vontade e determinação da mulher negra presente em “Kindred — Laços de Sangue” está presente aqui. Lauren dá o seu melhor enquanto seu bairro murado ainda está de pé, até mais ou menos a metade da história. E, literalmente da noite para o dia, é obrigada a sobreviver e superar todas as suas perdas materiais e imateriais.

E ainda conviver com o dom/maldição da hiperempatia — a habilidade de sentir, quase na mesma intensidade, o que as outras pessoas sentem emocional e fisicamente.

Um futuro retrógrado

O fato de a autora não ter visto a tecnologia chegar ao patamar que se encontra hoje é só um fato. No futuro de Lauren não existem smartphones, redes sociais ou mesmo internet móvel. Ela vive em um bairro murado — por questões de segurança — cujos outros moradores se ajudavam e revezavam para garantir a sobrevivência uns dos outros.

“Deus, como odeio esse lugar.

Ou melhor, eu o amo. É meu lar. Esta é a minha gente. Mas eu o odeio. Parece uma ilha cercada por tubarões — só que eles não perturbam você a menos que entre na água. Mas os tubarões terrestres de nossa ilha estão entrando. É só uma questão de quanto tempo demorarão para sentir fome o suficiente.”

Nos Estados Unidos — pasme — anos à frente do presente, uma situação assim parece um tanto esquisita, mas revela traços de realidade de qualquer outra nação. Escassez de água, crescimento do movimento vegetariano, empregos reduzidos, privatização de recursos naturais, altos índices de pessoas em situação de precariedade e refugiados indo para a mesma direção — sozinhos, em caravanas ou mal-intencionados.

Se o mundo não caminha para o que a garota apresenta, para onde caminha, afinal?

Religião, comunidade e resistência

“Muitas pessoas parecem acreditar em um Deus-paizão, em um Deus-tira-durão ou em um Deus-rei-supremo. Elas acreditam em uma espécie de superpessoa. Algumas acreditam que Deus é outra palavra para natureza. E a natureza acaba sendo qualquer coisa que por acaso elas não compreendem ou sobre a qual não sentem controle.”

Lauren cria, a partir de conceitos cristãos — seu pai era pastor — e vivências como “compartilhadora” (é assim que eles chamam os hipersensíveis na história), a Semente da Terra, religião que dá nome à sua saga e que a permite recrutar seus primeiros seguidores, montando uma pequena comunidade ao final do primeiro livro.

Questionando as ações de Deus sobre os humanos no tempo caótico em que vive, ela não prega sua inexistência, mas que Ele é Mudança. E que todos os seres humanos, como Sua imagem e semelhança, também são mutáveis e moldáveis como Deus. A Semente da Terra acaba não acolhendo só crentes, e esse ecletismo aproxima ainda mais algumas pessoas.

E, com esses novos conceitos, nasce uma nova comunidade autossustentável, transformando andarilhos em uma espécie de “bons frutos”, como a própria parábola que cede nome ao livro conta. No decorrer do caminho, algumas sementes caíram e não germinaram, morreram, queimaram… E em um solo fértil, fixo, as que restaram acabaram criando raízes. Será que em “Parábola dos Talentos” elas serão firmes?

Foto do livro “A Parábola do Semeador”, de Octavia E. Butler (foto: Alexandre de Almeida)

As sementes sempre viram plantas diferentes

Ao plantar nos leitores a perspectiva de um futuro sombrio e inabitável, Octavia E. Butler assumiu a responsabilidade de acender um alerta político e social. A luta pela igualdade racial e de gêneros, os surreais avanços do capitalismo e métodos que culpam a própria sociedade pelo seu fim não fazem parte da década que está prestes a iniciar.

Está tudo aqui, agora. E é preciso abrir os olhos.

Quem sabe haja luz no fim do túnel— e ela não seja um maluco drogado querendo queimar sua casa e sua família. Ou será preciso aderir à perigosa piro, a droga que faz as pessoas causarem incêndios citada na obra, para ficar vivo?

Por mais lenta que tenha sido minha leitura do primeiro livro, o conselho mais vindouro obtido é: leia-o de uma vez só. “A Parábola do Semeador” lhe parecerá monótono demais se, como eu, você demorar meses para terminá-lo. Ele foi escrito para impactar o leitor incomodado com o mundo à sua volta. Foi escrito para ser devorado rapidamente e digerido com um grande copo de água com açúcar.

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Alexandre de Almeida

Um virginiano falando sobre literatura, séries, música e cultura LGBTQIAP+