Os laços através do tempo

Alexandre de Almeida
3 min readApr 11, 2021

A escravidão no Brasil foi abolida em 1888 pela Lei Áurea. Nos Estados Unidos, foi um pouco mais cedo, em 1863, durante a Guerra Civil Americana. Ao voltar no tempo e descobrir “quando” esteve, Dana fica face a face com o sofrimento do período em que negros serviam a brancos, no final do século XVIII.

Em sua primeira viagem, a escritora salva um menino branco, Rufus, de se afogar em um rio, e, para voltar ao seu presente, na década de 1970, ela tem a vida ameaçada por uma arma de fogo. Na segunda viagem, Rufus já está um pouco crescido, e, ao voltar para sua época — com a ajuda de um quase estupro –, Dana tem mais tempo para vasculhar a árvore genealógica da família e descobrir que, incrivelmente, aquele garoto era seu antepassado.

Capa do livro publicado no Brasil pela Editora Morro Branco

Laços de sangue

Kindred — Laços de Sangue” leva esse nome exatamente por conta de uma ligação sanguínea entre Dana, a mulher do presente, e Rufus, o garoto do passado. Nada melhor que o exemplo dos próprios brasileiros donos de escravos, tão vistos na teledramaturgia, usando as mulheres negras como objetos sexuais, para explicar o quanto esses laços eram possíveis.

Dana deve proteger seu antepassado por que ele e uma escrava, Alice, teriam a primeira filha que originaria sua própria família. O que parecia muito irônico na história, porque Dana só era “chamada” ao passado quando Rufus estava em perigo, não sua antepassada escrava, e foram necessárias muitas viagens para educar o próprio tataravô.

O tempo da Ficção Científica

Uma coisa que Octavia Butler explorou bem foi o uso do tempo, da contagem dos dias e das horas, no meio da história. Tomo como exemplo a primeira viagem, em que Dana sai da sala de casa, desaparecendo na frente de Kevin — seu marido — e reaparecendo segundos depois, toda encharcada e suja de lama, na mesma sala, mas em um ponto diferente.

Porém, no passado, ela passou vários minutos tentando salvar um garoto quase afogado enquanto a mãe dele lhe batia por ser uma negra tocando seu filho.

Em outras partes, meses e meses no passado duravam somente algumas horas no presente de Dana. E, ok, dá uma vontade tremenda de calcular essa passagem de tempo, embora variasse.

Quando Dana começa a passar tempo demais no passado, as pessoas daquela época começam a dizer que ela é “branca demais”, por saber ler, escrever e falar melhor até que os próprios brancos, transformando sua estadia na fazenda num verdadeiro jogo de cintura pela sobrevivência.

Algo que intriga, e muito, no livro é ele já começar com um spoiler: na última viagem, Dana perde um braço. Talvez este também seja um fator que não lhe permita abandonar a história. A vontade de saber o que aconteceu para que ela perdesse um membro voltando ao presente é muito grande. A cada viagem, a cada aflição sofrida, o desejo pela solução do caso, somado às torturas, aumenta.

Ensinamentos de Butler

Butler aborda a história de seu próprio povo, suas origens, bem como a de diversos negros escravizados e vendidos como meras mercadorias. Isso inclui heróis libertadores, doenças, torturas — físicas e psicológicas –, mortes e outras coisas pertencentes à cultura americana daquele século.

A luta contra a escravidão, o racismo e as sementes do feminismo também estão presentes, em sua grande maioria, aplicadas por Dana — vinda do futuro cheia de ideias revolucionárias que assustavam a todos. A autora quis mostrar que se deve, SIM, mudar o passado quando viajar no tempo. Mas mudar do jeito certo.

Dana tentou impedir estupros, relações entre pessoas de idades completamente diferentes, abusos de poder e até mesmo tentou fugir. Ah, e em uma das viagens, Kevin acabou indo parar no passado junto com ela. O resto, você pode imaginar.

Octavia Butler ensinou muita coisa em vida com este e outros livros.

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Alexandre de Almeida

Um virginiano falando sobre literatura, séries, música e cultura LGBTQIAP+